We love you Gui!!!!
O designer
Gui Bonsiepe é agora Doutor Honoris Causa da Universidade de Lisboa.
Chile, Brasil, ou Portugal têm na sua história a marca dele. |
Bonsiepe esperava-nos à porta da Faculdade de Belas-Artes da
Universidade de Lisboa, que neste mês lhe atribuiu o título de Doutor
Honoris Causa, sublinhando a sua ação como designer "na transformação e
desenvolvimento económico da sociedade em países como Portugal, Brasil,
Chile e Argentina".
Estava a dias dos 84 anos, que haveria de completar
ainda em Lisboa, antes de voltar ao vai e vem entre Buenos Aires e
Florianópolis (onde criou o Laboratório Brasileiro de Desenho
Industrial), caminho que ele e a mulher gostam de percorrer sem pressa,
ao longo de dois dias e meio.
Se o
sotaque entre o português do Brasil e o espanhol pudesse espantar, vindo
de um rosto alemão, mais espanta imaginá-lo um jovem hippie de
cabelos compridos a entrar, "por um mal-entendido", na Escola de Design
de Ulm - icônica na Alemanha do pós-guerra e absolutamente dissonante
do país destruído e cinzento onde despontou - com as suas ilustrações e
gravuras. O que aí encontrou, ao contrário da escola virada para as
Belas-Artes que procurava, foi Tomás Maldonado, o argentino que haveria
de se tornar seu mentor, a dizer coisas que o fariam "descobrir outro
mundo, como estas: "Um objeto bem feito não tem menos dignidade e valor
cultural do que uma obra de arte. Não aceitamos esta hierarquização
entre arte e design." Meu dito meu feito. Bonsiepe estudou na escola e
ali se tornaria também professor até 1968, quando por acaso havia pedido
um ano sabático e a escola fechou.
"Eu
tinha uma oferta das Nações Unidas para ir ao Chile assessorar a
pequena e média indústria. Eles tinham um programa de desenvolvimento
industrial em vários países latino-americanos. A industrialização
parecia um caminho para melhorar o bem-estar da sociedade e da economia,
e uma maneira de fomentar esta política era o uso do design."
E
foi já no Chile de Salvador Allende (Presidente do país entre 1970 e
1973) que Bonsiepe, com uma equipa de jovens na sua maioria chilenos,
desenhou aquilo que o país não tinha senão importando-o.
"Foi um dos
períodos mais interessantes da minha vida profissional, porque via-se de
forma quase direta a relevância do design. Tudo era feito me equipa." O
designer recorda "os móveis, a maquinaria, produtos de consumo massivo,
como toca-discos, e o projeto, para mim o socialmente mais importante, e
simples: uma colher para medir a quantidade de leite em pó." Então, por
extraordinários (de tão simples na maioria dos casos) que sejam a caixa
para guardar pescado, o gira-discos portátil, uma máquina agrícola para
cortar pasto, ou os brinquedos em madeira, focamo-nos nessa colher do
leite para bebê. "Como médico, Allende sabia que para as crianças é
importante, em certa idade, ter um consumo adequado de proteínas. Se
isso passa, é muito difícil recuperar. Então o governo deu à população
este leite em pó grátis, e descobriu-se que a maioria ou tomou leite em
pó demasiado diluído ou demasiado pesado. Fizemos este objeto muito
simples, distribuído gratuitamente: uma colher."
Outro
dos projetos em que Bonsiepe colaborou com o regime chileno foi a
pioneira sala de operações Cybersyn, concebida pelo inglês Stafford
Beer, uma das grandes figuras da cibernética, para apoiar o governo de
Allende. Era uma única sala com tecnologia pioneira que tornou possível
monitorizar a economia de todo o país, além de facilitar e informar a
tomada de decisões, no quadro do caminho socialista que o país então
seguia. A Bonsiepe caberia o design daquele espaço.
"Naquele
momento não entendíamos ainda a importância deste projeto, que era
muito complexo, muito ambicioso. As especificações técnicas eram muito
vagas: "Precisamos de uma sala para dez pessoas, com cadeiras, temos de
ter um painel onde colocar gráficos de economia..." Parecia muito
simples. Quando o Stafford Beer viu o primeiro projeto não gostou nada.
"Quero uma sala com a atmosfera de um clube inglês. Não queremos mesas",
disse. Na entrada quis colocar um cartaz [onde se lia]: Proibido levar
papéis. Esta é uma sala para pensar, discutir, e planear."
Antiburocrático ao máximo." Quem olhar para aquela sala futurista, a
Cybersyn, e nela encontrar algumas semelhanças com a imagem da Apple,
não deverá estranhar. Como Evgeny Morozov lembrava num artigo da New Yorker, Steve Jobs e o designer da marca da maçã foram também inspirados pela Escola de Design de Ulm.
Depois
veio o golpe de Augusto Pinochet e a Cybersyn foi destruída. "O
passaporte alemão é que me salvou. Foi uma experiência traumática. Quase
todos os meus colaboradores foram feitos prisioneiros, ficaram quatro
ou cinco meses detidos. Não gostei. Ofereceram-me [a possibilidade de]
ficar no instituto e eu disse: Não, sacaram os meus colaboradores de
confiança sem explicação."
Ficou
desempregado. "Tinha três crianças, a minha primeira mulher era
argentina, e então fomos." Além disso, entre ele e Buenos Aires fora
amor à primeira vista quando, ainda antes de ir para o Chile, foi à
Argentina dar um curso de design de embalagem.
"Não
tinha muita vontade de voltar para a Alemanha. Gostei da América Latina
talvez por pura oposição. Recebi formação prussiana, muito ordenada. Na
América Latina é o oposto, é o caos permanente. Achei interessante este
aspeto de surpresas permanentes. Com o jeito de cultura latina sinto-me
muito mais à vontade. E admito que gosto do espaço, enorme", explica
Bonsiepe, mestre num discurso que serpenteia entre a sua experiência e a
sua visão sobre o design, que tem transmitido através de livros como
Diseño industrial: artefacto y proyecto, de 1975, ou Diseño y crisis, de
2012.
"Nos anos 60, a Argentina tinha o
mesmo nível de design que os países centrais, excelentes profissionais,
escolas públicas. Depois perdeu-se um pouco isto. A partir dos anos 80
começou uma fase de desindustrialização." Da Argentina olhamos para
aquela que é uma das suas opiniões mais difundidas: "Os países não
industrializados periféricos exportam matérias-primas - metais,
petróleo, carvão. São tudo produtos que não precisam de design. Essa
política forte de apostar na desindustrialização e exportar só
matéria-prima, commodities, parece-me nociva."
Mais do que coisas bonitinhas
Outra
das suas teses, talvez a principal, que pôs em prática na América
Latina, é esta: " Não acredito em design importado, feito nos países
centrais para os países periféricos, de jeito nenhum. Se fazemos design
como andorinhas visitantes vamos ao contexto concreto, com todas as
limitações que existem, tecnológicas, econômicas. Inicialmente os
engenheiros olharam-nos com uma certa distância, como bichos raros, e
não sabiam muito bem como classificar o nosso trabalho. Passo a passo,
ganhámos a confiança dos outros especialistas, que entenderam que o
design não é somente fazer coisas bonitinhas", explica Bonsiepe.
E
foi para engenheiros, e para arquitetos, uma vez que não havia ainda
designers em Portugal. Ele próprio contou-o, no seu discurso de
aceitação do título de Doutor Honoris Causa: "Vim a Portugal pela
primeira vez faz quase 40 anos, em 1979, com um encargo da agência das
Nações Unidas para o Desenvolvimento. Por um mês, deveria dar um curso
de design de móveis e produtos de madeira para um grupo de profissionais
afins a esta temática e formar uma ideia, ainda provisória, sobre o
estado do design nas pequenas indústrias de móveis e de madeira no país
depois da Revolução dos Cravos e a transição para uma democracia. Além
disso, deveria formular propostas para melhorar o padrão do design
industrial das cerca de 1400 pequenas empresas do setor que existiam
naquele tempo em Portugal."
Perguntamos-lhe
se recorda as considerações de então. "Eram produtos bem feitos, porém
os preços não eram competitivos. Este projeto foi feito para preparar a
entrada no Mercado Comum, sete anos depois, porque [Portugal] não podia
competir."
Voltou há uns anos, para
avaliar os cursos de design no Porto, cidade a que agora se seguiu
Lisboa, para receber esta distinção da Universidade. Por aqueles dias,
havia caminhado pela cidade "sem objetivo", que é, aliás, a forma que
prefere para conhecer uma cidade. Impressionou-se com as "pequenas lojas
de cerâmica" que encontrou, e num instante está a falar do processo de
produção das obras em cerâmica e do conhecimento técnico necessário para
as fabricar.
A história de Gui
Bonsiepe atravessa parte do continente americano, do Sul até aos Estados
Unidos, onde aprendeu e trabalhou como designer de interfaces, sempre
com regressos à Europa. Ensinou e criou cursos em universidades da
Alemanha, Brasil, ou Argentina, e ainda hoje dá seminários e palestras.
Na semana do honoris causa, falou para os alunos da Faculdade de
Belas-Artes.
O que lhe vem à cabeça
quando pensa que o design pode mudar uma sociedade? "Penso num objeto
que seja útil, sem muitas pretensões, com qualidade técnica de
elaboração e estética. A nossa modesta contribuição como designers é
fazer objetos utilizáveis, que prestam um serviço: design é serviço.
Como um escritor escreve uma boa instrução de uso de um medicamento. É
um texto útil, que deve ser compreendido, é uma coisa seria. Hoje em dia
os textos são tão complicados, com tantas advertências, que eu tenho
medo de tomar o medicamento [ri-se]. Estes textos utilitários não têm
menos valor cultural que uma poesia. São coisas diferentes. Porque é que
os objetos de uso quotidiano são desprezíveis?"
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2021
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