Antropologia a serviço da inovação
É no entendimento da diferença entre
o meu universo cultural e o do outro, que se produz. Sem estabelecer
hierarquias e/ou gradações, mas reconhecendo, entendendo e explicando o
universo cultural do grupo pesquisado.
Por Carol Zatorre (*)
Geralmente, quando falo de trabalho,
provoco duas surpresas nos meus interlocutores. A primeira acontece ao
contar qual é a minha formação, a antropologia, carreira pouco comum no
mercado corporativo. E a segunda ao explicar que atuo diretamente com
inovação, mais especificamente com empresas que buscam a transformação
digital de seus negócios. Se fosse para resumir, diria que é a
antropologia a serviço da inovação.
A razão principal para essa união é pensar
num negócio sustentável, no sentido de proposta de valor, centrada nas
necessidades dos indivíduos . Ou melhor, a alteridade. Segundo a
antropóloga Mariza Peirano, “a alteridade é um aspecto fundante da antropologia, sem o qual a disciplina não reconhece a si própria”. E esta é a forma de a antropologia atuar: construindo e interpretando conteúdo com aqueles que usam, de artefatos a serviços
Ou seja, é no entendimento da diferença
entre o meu universo cultural e o do outro, que se produz. Sem
estabelecer hierarquias e/ou gradações, mas reconhecendo, entendendo e
explicando o universo cultural do grupo pesquisado. Ao observar o
cotidiano alheio, devo buscar explicar o que vejo pela ótica de quem
está sendo pesquisado.
Quando comecei a trabalhar com designers,
ouvia sobre “ter empatia com o usuário”, popularizado pela D.School com o
famoso bordão “EMPATHY HAPPENS”. E é aí, que ao meu ver, antropologia,
design e inovação se unem para construir/propor/compreender a
necessidade desse processo de transformação digital. Ou seja, o
conhecimento antropológico é do interesse do mercado, mas, por si só, é
hermético. No entanto, é o processo do design que consegue entregar a
aplicabilidade desse conhecimento para o mercado trazendo inovações.
Lembrando que a transformação digital não pode ser apenas prática, é
preciso que seja assimilada e incorporada no mindset de toda a empresa.
Recentemente, em um projeto pioneiro de
inovação para a administração pública contratado pelo Instituto de
Pesquisa e Planejamento da cidade de São José dos Campos, me dediquei a
compreender as razões pelas quais iniciativas de transformação digital
para serviços públicos do município geravam pouco engajamento da
população. Era uma incógnita, por exemplo, o fato de um cidadão se
dispor a pegar uma fila de horas para protocolar um pedido de poda de
árvore sendo que o serviço estava disponível no portal da cidade. Falta
de comunicação? Sim, mas a questão se mostrou mais complexa conforme
fomos pesquisando as dores e necessidades da população.
Ainda que São José dos Campos seja uma das
cidades mais prósperas do país, abrigando referências de inovação como a
Embraer e o Instituto de Tecnologia da Aeronáutica, a relação do
cidadão com a administração pública se mostrava muito pouco amigável.
Contribuíam para isso a média de idade da população, mais velha do que
em outros municípios com as mesmas características, e a total falta de
usabilidade contextual das interfaces dos sites e formulários da
prefeitura. Ou seja, mesmo que estivessem dispostos a interagir
digitalmente com a administração pública, as barreiras eram enormes.
Mas essas conclusões só ficaram evidentes
pelo fato de termos olhado não apenas para a plataforma, e sim para a
população e suas características sociais. Foi assim que o gap entre o
usuário e a face digital da prefeitura ficou exposto.
Em um contexto de aceleração dos processos
de transformação digital em todas as áreas, a percepção do consumidor e
usuário, ou melhor, do indivíduo, é crucial para qualquer plano de novo
produto ou serviço. É preciso ressaltar que a inovação não se dá apenas
com tecnologia, ela é cada vez mais humanizada. Até os robôs vêm
passando por esse processo de humanização. E aí fica evidente a conexão
entre antropologia e inovação, um tema que muito em breve deixará de ser
distante para as pessoas.
Carol Zatorre é head de pesquisa da Kyvo Design-Driven Innovation
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